…………………….
Sinto na alma saudades torturantes
Dos serões e das festas ruidosas,
Com luzes, flor’s e pratas cintilantes,
Veludos, sedas, pedras preciosas.
…………………….
Era assim que, na fantasia “Chá de Limonete”, de Mestre José da Silva Ribeiro, a nobre e envelhecida figura do palácio dos senhores de Tavarede, recordava o seu passado.
Como sabemos, o paço de Tavarede foi sempre a residência permanente da fidalga família dos Quadros, desde a sua construção, ainda na primeira metade do século XVI.
A 10ª Senhora de Tavarede, D. Antónia Madalena de Quadros e Sousa, casou, no dia 26 de Dezembro de 1791, com o célebre fidalgo D. Francisco de Almada e Mendonça, corregedor da cidade do Porto, onde realizou importantes obras. A família “Quadros e Almada” passou a ter a sua residência naquela cidade nortenha, fazendo, no entanto, frequentes visitas à nossa terra, onde, no dizer de Pinho Leal, no seu “Dicionário Portugal Antigo e Moderno”, “era a providência dos povos desta terra”.
Tendo enviuvado no ano de 1804, é de presumir que tenha voltado a fixar residência em Tavarede, onde faleceu no dia 25 de Fevereiro de 1835, encontrando-se sepultada na cripta do convento de Santo António, na Figueira da Foz.
Vem isto a propósito para referir que, sendo o palácio de Tavarede residência permanente, ou simplesmente temporária, o mesmo deveria estar mobilado, senão com luxo, pelo menos com as comodidades necessárias ao alojamento da, habitualmente numerosa, família Quadros.
O único filho varão de D. Antónia Madalena e de D. Francisco de Almada e Mendonça, que se chamou João de Almada Quadros Sousa de Lencastre, casou, em 1810, com D. Maria Francisca Emília da Fonseca Pinto de Albuquerque Araújo e Meneses, filha e herdeira do superintendente das coudelarias da comarca de Trancoso, possuidor de largas propriedades naquela terra, que constituíam um morgado, e que, pelo casamento, se uniram à casa de Tavarede.
Passou, entretanto, a residir em Trancoso, com sua família, fazendo, especialmente na época balnear, frequentes e demoradas visitas à nossa terra, instalando-se no seu velho solar de Tavarede.
De igual modo terá procedido o seu filho e herdeiro, o segundo conde de Tavarede, de quem, por seu falecimento em Novembro de 1853, foi herdeiro seu filho primogénito, D. João Carlos Emílio Vicente Francisco d’Almada Quadros Sousa Lencastre Saldanha e Albuquerque que, igualmente, herdou o título de conde de Tavarede.
Esta história tem, como um dos protagonistas, precisamente este titular. “Fidalgo no sangue, no aprumo, na ilustração, no carácter, no sentimento e invariável nas acções, o grande amigo imprimia feição a Trancoso, dava-lhe a sua vida, do seu tom, dos seus nervos, da sua qualificação social, anímica e mental: alma de luz, propagava a luz”, escreveu o jornal A Folha de Trancoso, tempos depois da sua morte.
Como curiosidade, e somente para reforço do que se disse sobre as suas deslocações a Tavarede, recorda-se que o conde, em Setembro de 1883, tomou posse como presidente da Direcção da Associação Humanitária dos Bombeiros Voluntários da Figueira da Foz. Certamente que, se aceitou essa nomeação, seria porque aqui estava o tempo necessário para o desempenho do mesmo ou, talvez, porque tencionava mudar a sua residência para a nossa terra, uma vez que, por essa ocasião, mandou fazer importantes obras de transformação no palácio.
Não deixa de ser interessante, e relativamente a esta história de “A mobília do senhor conde”, o que Ernesto Tomás escreveu na sua reportagem sobre Tavarede, de que já fiz algumas transcrições, agora sobre o palácio da nossa terra:
“Quando por essa época (1865) entrei, pela primeira vez, no edifício do Paço, velho alcácer onde esteve D. Maria Mendes Petite, mãe de Pêro Coelho, um dos que fizeram de D. Inês de Castro uma vítima, condenada pelo seu amor clandestino; quando subi aquelas escadas de pedra, frias e húmidas, que iam dar ao andar nobre do edifício e percorri aquelas salas vastas, mas sem conforto, lembrou-me mais do que uma vez que por ali teriam andado os passos do velho soldado da Índia, D. Francisco de Almada (referia-se ao pai do marido de D. Antónia Madalena), que por lá teria pisado António Pereira (?) de Quadros, e a última habitante do velho solar, D. Antónia Madalena de Quadros e Sousa.
……………
Percorrendo aquela antiquíssima habitação, ainda encontrámos os restos de um altar, numa das divisões ao lado do corredor principal que se dirige, no andar nobre, do norte ao sul. Um oratório, apresentando o seu esqueleto em madeira, tosca, conserva ainda ligados uns restos de forro de pano escuro, com umas linhas de galão sem brilho já. De resto nada de importante”.
Surpreende bastante esta descrição. Ponho, no entanto, uma hipótese. Esta visita terá ocorrido relativamente pouco tempo antes do início das obras de transformação do velho edifício que acima referi, das quais as mais importantes terão sido o desmantelamento da altaneira torre com ameias e a modificação da frontaria do lado poente, com os novos torreões e os rendilhados estilo manuelino, que ainda bem conhecemos. Estariam, então, as mobílias devidamente guardadas em qualquer armazém? É de admitir que sim, e que seriam utilizadas quando a família fidalga aqui vinha passar as suas férias balneares e, talvez, acompanhar o andamento das obras.
Vamos, agora, passar ao segundo protagonista da história: o reverendo pároco Joaquim da Costa e Silva. No ano de 1894, o padre António Augusto Nobreza, também ele protagonista de uma outra história igualmente contada neste caderno, havia sido transferido para outra paróquia e, como era uso naqueles tempos, a diocese de Coimbra abriu concurso para provimento deste cargo, tendo sido provido no mesmo, em Junho de 1894, o padre Costa e Silva, até então coadjutor na paróquia de Paião.
Foi uma figura bastante controversa. Devemos recordar, porém, que naqueles já recuados tempos, as lutas políticas eram assaz violentas. Os militantes de um partido político sofriam, frequentemente, ataques dos partidos adversários. A imprensa, então, explorava ao mais pequeno pormenor todas as possíveis fraquezas e falhas dos responsáveis partidários. Os correspondentes locais, concretamente refiro-me ao caso de Tavarede, muitas vezes se excediam, chegando, até, à difamação e ao insulto, o que resultava, de vez em quando, em desmentidos públicos, quase sempre ordenados pelo Tribunal.
O padre Joaquim da Costa e Silva era natural da Ereira, concelho de Montemor-o-Velho. Como já referi, foi provido na igreja de Tavarede em Junho de 1894. Os próprios adversários políticos reconheciam-no como pessoa bastante inteligente e denodado lutador pelo bem-estar dos povos das paróquias onde esteve, como Paião, Tavarede e, por último, Quiaios.
Recordo, somente, o que o jornal “A Voz da Justiça” escreveu, no dia 4 de Janeiro de 1924, noticiando o seu falecimento: “o padre Joaquim da Costa e Silva que, antes de paroquiar Quiaios, esteve a dirigir a igreja de Tavarede, foi sempre um político activo, pondo a sua influência ao serviço dos homens que aqui defendiam a política regeneradora, antes da proclamação da república e, na vigência desta, dos que, monárquicos ou republicanos, combatiam a política democrática.
Foi sempre nosso adversário. Isto não obsta que, esquecendo nesta hora certos actos por ele praticados e que nós aqui atacámos, digamos que, nas vezes em que o padre Joaquim da Costa e Silva ocupou na Câmara Municipal o lugar de vereador, procurou sempre obter benefícios para a localidade onde paroquiava”.
Estão feitas as apresentações dos dois protagonistas desta história. Vamos, agora, à mesma: “A mobília do senhor conde”.
* * *
Na edição de 20 de Janeiro de 1899 o jornal “O Povo da Figueira” escreveu, em correspondência de Tavarede:
“…….. Quando o conde de Tavarede resolveu vender a casa que aqui tinha (o Paço), e onde havia mobília valiosa, o nosso Papa-jantares (alcunha atribuída ao padre Costa e Silva, não sei a que propósito), dirigiu-se logo a Trancoso a falar com ele, afim de lhe pedir um guarda-roupa para uma aplicação religiosa………..”.
O conde, que era uma pessoa religiosa e bastante generosa, vendo o fim a que se destinava essa peça de mobília, não hesitou e de imediato escreveu um pequeno bilhete, dirigido ao seu feitor, que tinha mandado a Tavarede precisamente para embalar todas as mobílias existentes no palácio, e no qual ordenava para “…. lhe dar o que fosse preciso para a igreja”.
Com aquele bilhete na mão, logo que chegado a Tavarede, o pároco foi ter com o feitor e exigiu o cumprimento das ordens do conde. Reconhecendo a letra do patrão, de imediato o homem se prontificou a cumprir o que lhe era ordenado e logo se disponibilizou para fazer a entrega “de tudo o que fosse preciso para a igreja”. Era, assim, que estava a ordem escrita.
Realizada, entretanto, a venda do palácio e da quinta, o conde veio à Figueira para ultimar tudo. O comprador foi o sr. Luís João Rosa, de quem também conto, neste caderno, uma pequena história.
Depois de tudo tratado com a venda, foi o conde a Tavarede para concluir as providências que havia ordenado ao seu feitor, quanto à embalagem da mobília, que tencionava enviar, pelo caminho de ferro, para a sua casa de Trancoso. Calcule-se, agora, o seu espanto quando o seu empregado lhe disse que a mobília havia-a levado o padre Joaquim da Costa e Silva, a quem a havia entregado em obediência às ordens do sr. conde, conforme o bilhete que lhe mandou e no qual dizia para “entregar o que fosse preciso para a igreja”.
Ruínas do velho palácio
Após dar umas voltas pelas salas, então já praticamente vazias, o conde, vendo que o padre, que lhe tinha pedido unicamente um guarda-roupa, lhe levara as principais peças de mobília que ainda cá tinha, teve o seguinte desabafo: “se a casa tivesse rodas também era capaz de a levar para casa dele”!
Alma bondosa, porém, nada mais disse ou empreendeu, e como não haviam restado senão umas “fracas coisas de mobília”, deu-as ao feitor e regressou a Trancoso de mãos vazias, relativamente à mobília que viera buscar a Tavarede.
O jornal, explorando o caso, acrescenta: “Quem for à igreja só lá vê um guarda-roupa, mas se forem a casa do meu amiguinho (o padre Costa e Silva), lá encontram um bom aparador e muitas outras coisas. O resto da mobília, como lhe não cabia toda em casa, tratou de mobilar a casa de um amigo”!
Entre outras peças, o jornal acrescenta que o pároco levou: “dois guarda-roupas, um importante aparador, duas boas mesas, um lavatório, uma banquinha, uma excelente mesa de jogo (até isto!!!) e não sei que mais”.
O padre, depois do conde se ter ido embora, tomou conhecimento da reacção do titular e comentou para com uns amigos que “a mobília tinha sido levada por ordem do conde”.
Comentário final: se a tinha dado, porque razão mandou o conde a Tavarede um seu empregado (Francisco Pires) com a incumbência de empalhar e embalar a mobília para a despachar pelo caminho de ferro? E porque razão, ao tomar conhecimento do caso, o conde havia comentado “se a casa tivesse rodas também a levava para casa dele?”. Estas palavras foram ouvidas por pessoas da terra, que as confirmaram ao correspondente do jornal.
Adianta ainda o referido correspondente que, depois, o pároco mandou chamar o feitor para que lhe contasse o que se havia passado e sabendo que o conde tinha ficado bastante zangado, principalmente por causa do aparador, que era um móvel muito valioso e pelo qual tinha particular estima, disse ao homem que estava pronto a devolver tudo que o conde quisesse, embora sempre insistindo que ele lhe havia dado toda a mobília que havia trazido.
Não sei se o feitor comunicou para Trancoso esta informação do pároco mas, na verdade, o conde não quis mais saber do caso nem da mobília.
Alguns anos mais tarde, é o correspondente em Quiaios, do jornal “A Voz da Justiça”, que fala na mobília, numa pequena local daquela povoação, em Junho de 1905: “…….no jantar dado (pelo padre Joaquim da Costa e Silva, que fora, entretanto, transferido para Quiaios) foram muito apreciados uns pastéis com recheio de mogno, do conde de Tavarede, e uns pãezinhos feitos de milho da congrua que pertencia ao padre Manuel Vicente, actual pároco de Tavarede”.
Será que, na verdade, “a mobília do senhor conde” foi acabar a sua existência em Quiaios?
Sinto na alma saudades torturantes
Dos serões e das festas ruidosas,
Com luzes, flor’s e pratas cintilantes,
Veludos, sedas, pedras preciosas.
…………………….
Era assim que, na fantasia “Chá de Limonete”, de Mestre José da Silva Ribeiro, a nobre e envelhecida figura do palácio dos senhores de Tavarede, recordava o seu passado.
Como sabemos, o paço de Tavarede foi sempre a residência permanente da fidalga família dos Quadros, desde a sua construção, ainda na primeira metade do século XVI.
A 10ª Senhora de Tavarede, D. Antónia Madalena de Quadros e Sousa, casou, no dia 26 de Dezembro de 1791, com o célebre fidalgo D. Francisco de Almada e Mendonça, corregedor da cidade do Porto, onde realizou importantes obras. A família “Quadros e Almada” passou a ter a sua residência naquela cidade nortenha, fazendo, no entanto, frequentes visitas à nossa terra, onde, no dizer de Pinho Leal, no seu “Dicionário Portugal Antigo e Moderno”, “era a providência dos povos desta terra”.
Tendo enviuvado no ano de 1804, é de presumir que tenha voltado a fixar residência em Tavarede, onde faleceu no dia 25 de Fevereiro de 1835, encontrando-se sepultada na cripta do convento de Santo António, na Figueira da Foz.
Vem isto a propósito para referir que, sendo o palácio de Tavarede residência permanente, ou simplesmente temporária, o mesmo deveria estar mobilado, senão com luxo, pelo menos com as comodidades necessárias ao alojamento da, habitualmente numerosa, família Quadros.
O único filho varão de D. Antónia Madalena e de D. Francisco de Almada e Mendonça, que se chamou João de Almada Quadros Sousa de Lencastre, casou, em 1810, com D. Maria Francisca Emília da Fonseca Pinto de Albuquerque Araújo e Meneses, filha e herdeira do superintendente das coudelarias da comarca de Trancoso, possuidor de largas propriedades naquela terra, que constituíam um morgado, e que, pelo casamento, se uniram à casa de Tavarede.
Passou, entretanto, a residir em Trancoso, com sua família, fazendo, especialmente na época balnear, frequentes e demoradas visitas à nossa terra, instalando-se no seu velho solar de Tavarede.
De igual modo terá procedido o seu filho e herdeiro, o segundo conde de Tavarede, de quem, por seu falecimento em Novembro de 1853, foi herdeiro seu filho primogénito, D. João Carlos Emílio Vicente Francisco d’Almada Quadros Sousa Lencastre Saldanha e Albuquerque que, igualmente, herdou o título de conde de Tavarede.
Esta história tem, como um dos protagonistas, precisamente este titular. “Fidalgo no sangue, no aprumo, na ilustração, no carácter, no sentimento e invariável nas acções, o grande amigo imprimia feição a Trancoso, dava-lhe a sua vida, do seu tom, dos seus nervos, da sua qualificação social, anímica e mental: alma de luz, propagava a luz”, escreveu o jornal A Folha de Trancoso, tempos depois da sua morte.
Como curiosidade, e somente para reforço do que se disse sobre as suas deslocações a Tavarede, recorda-se que o conde, em Setembro de 1883, tomou posse como presidente da Direcção da Associação Humanitária dos Bombeiros Voluntários da Figueira da Foz. Certamente que, se aceitou essa nomeação, seria porque aqui estava o tempo necessário para o desempenho do mesmo ou, talvez, porque tencionava mudar a sua residência para a nossa terra, uma vez que, por essa ocasião, mandou fazer importantes obras de transformação no palácio.
Não deixa de ser interessante, e relativamente a esta história de “A mobília do senhor conde”, o que Ernesto Tomás escreveu na sua reportagem sobre Tavarede, de que já fiz algumas transcrições, agora sobre o palácio da nossa terra:
“Quando por essa época (1865) entrei, pela primeira vez, no edifício do Paço, velho alcácer onde esteve D. Maria Mendes Petite, mãe de Pêro Coelho, um dos que fizeram de D. Inês de Castro uma vítima, condenada pelo seu amor clandestino; quando subi aquelas escadas de pedra, frias e húmidas, que iam dar ao andar nobre do edifício e percorri aquelas salas vastas, mas sem conforto, lembrou-me mais do que uma vez que por ali teriam andado os passos do velho soldado da Índia, D. Francisco de Almada (referia-se ao pai do marido de D. Antónia Madalena), que por lá teria pisado António Pereira (?) de Quadros, e a última habitante do velho solar, D. Antónia Madalena de Quadros e Sousa.
……………
Percorrendo aquela antiquíssima habitação, ainda encontrámos os restos de um altar, numa das divisões ao lado do corredor principal que se dirige, no andar nobre, do norte ao sul. Um oratório, apresentando o seu esqueleto em madeira, tosca, conserva ainda ligados uns restos de forro de pano escuro, com umas linhas de galão sem brilho já. De resto nada de importante”.
Surpreende bastante esta descrição. Ponho, no entanto, uma hipótese. Esta visita terá ocorrido relativamente pouco tempo antes do início das obras de transformação do velho edifício que acima referi, das quais as mais importantes terão sido o desmantelamento da altaneira torre com ameias e a modificação da frontaria do lado poente, com os novos torreões e os rendilhados estilo manuelino, que ainda bem conhecemos. Estariam, então, as mobílias devidamente guardadas em qualquer armazém? É de admitir que sim, e que seriam utilizadas quando a família fidalga aqui vinha passar as suas férias balneares e, talvez, acompanhar o andamento das obras.
Vamos, agora, passar ao segundo protagonista da história: o reverendo pároco Joaquim da Costa e Silva. No ano de 1894, o padre António Augusto Nobreza, também ele protagonista de uma outra história igualmente contada neste caderno, havia sido transferido para outra paróquia e, como era uso naqueles tempos, a diocese de Coimbra abriu concurso para provimento deste cargo, tendo sido provido no mesmo, em Junho de 1894, o padre Costa e Silva, até então coadjutor na paróquia de Paião.
Foi uma figura bastante controversa. Devemos recordar, porém, que naqueles já recuados tempos, as lutas políticas eram assaz violentas. Os militantes de um partido político sofriam, frequentemente, ataques dos partidos adversários. A imprensa, então, explorava ao mais pequeno pormenor todas as possíveis fraquezas e falhas dos responsáveis partidários. Os correspondentes locais, concretamente refiro-me ao caso de Tavarede, muitas vezes se excediam, chegando, até, à difamação e ao insulto, o que resultava, de vez em quando, em desmentidos públicos, quase sempre ordenados pelo Tribunal.
O padre Joaquim da Costa e Silva era natural da Ereira, concelho de Montemor-o-Velho. Como já referi, foi provido na igreja de Tavarede em Junho de 1894. Os próprios adversários políticos reconheciam-no como pessoa bastante inteligente e denodado lutador pelo bem-estar dos povos das paróquias onde esteve, como Paião, Tavarede e, por último, Quiaios.
Recordo, somente, o que o jornal “A Voz da Justiça” escreveu, no dia 4 de Janeiro de 1924, noticiando o seu falecimento: “o padre Joaquim da Costa e Silva que, antes de paroquiar Quiaios, esteve a dirigir a igreja de Tavarede, foi sempre um político activo, pondo a sua influência ao serviço dos homens que aqui defendiam a política regeneradora, antes da proclamação da república e, na vigência desta, dos que, monárquicos ou republicanos, combatiam a política democrática.
Foi sempre nosso adversário. Isto não obsta que, esquecendo nesta hora certos actos por ele praticados e que nós aqui atacámos, digamos que, nas vezes em que o padre Joaquim da Costa e Silva ocupou na Câmara Municipal o lugar de vereador, procurou sempre obter benefícios para a localidade onde paroquiava”.
Estão feitas as apresentações dos dois protagonistas desta história. Vamos, agora, à mesma: “A mobília do senhor conde”.
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Na edição de 20 de Janeiro de 1899 o jornal “O Povo da Figueira” escreveu, em correspondência de Tavarede:
“…….. Quando o conde de Tavarede resolveu vender a casa que aqui tinha (o Paço), e onde havia mobília valiosa, o nosso Papa-jantares (alcunha atribuída ao padre Costa e Silva, não sei a que propósito), dirigiu-se logo a Trancoso a falar com ele, afim de lhe pedir um guarda-roupa para uma aplicação religiosa………..”.
O conde, que era uma pessoa religiosa e bastante generosa, vendo o fim a que se destinava essa peça de mobília, não hesitou e de imediato escreveu um pequeno bilhete, dirigido ao seu feitor, que tinha mandado a Tavarede precisamente para embalar todas as mobílias existentes no palácio, e no qual ordenava para “…. lhe dar o que fosse preciso para a igreja”.
Com aquele bilhete na mão, logo que chegado a Tavarede, o pároco foi ter com o feitor e exigiu o cumprimento das ordens do conde. Reconhecendo a letra do patrão, de imediato o homem se prontificou a cumprir o que lhe era ordenado e logo se disponibilizou para fazer a entrega “de tudo o que fosse preciso para a igreja”. Era, assim, que estava a ordem escrita.
Realizada, entretanto, a venda do palácio e da quinta, o conde veio à Figueira para ultimar tudo. O comprador foi o sr. Luís João Rosa, de quem também conto, neste caderno, uma pequena história.
Depois de tudo tratado com a venda, foi o conde a Tavarede para concluir as providências que havia ordenado ao seu feitor, quanto à embalagem da mobília, que tencionava enviar, pelo caminho de ferro, para a sua casa de Trancoso. Calcule-se, agora, o seu espanto quando o seu empregado lhe disse que a mobília havia-a levado o padre Joaquim da Costa e Silva, a quem a havia entregado em obediência às ordens do sr. conde, conforme o bilhete que lhe mandou e no qual dizia para “entregar o que fosse preciso para a igreja”.
Ruínas do velho palácio
Após dar umas voltas pelas salas, então já praticamente vazias, o conde, vendo que o padre, que lhe tinha pedido unicamente um guarda-roupa, lhe levara as principais peças de mobília que ainda cá tinha, teve o seguinte desabafo: “se a casa tivesse rodas também era capaz de a levar para casa dele”!
Alma bondosa, porém, nada mais disse ou empreendeu, e como não haviam restado senão umas “fracas coisas de mobília”, deu-as ao feitor e regressou a Trancoso de mãos vazias, relativamente à mobília que viera buscar a Tavarede.
O jornal, explorando o caso, acrescenta: “Quem for à igreja só lá vê um guarda-roupa, mas se forem a casa do meu amiguinho (o padre Costa e Silva), lá encontram um bom aparador e muitas outras coisas. O resto da mobília, como lhe não cabia toda em casa, tratou de mobilar a casa de um amigo”!
Entre outras peças, o jornal acrescenta que o pároco levou: “dois guarda-roupas, um importante aparador, duas boas mesas, um lavatório, uma banquinha, uma excelente mesa de jogo (até isto!!!) e não sei que mais”.
O padre, depois do conde se ter ido embora, tomou conhecimento da reacção do titular e comentou para com uns amigos que “a mobília tinha sido levada por ordem do conde”.
Comentário final: se a tinha dado, porque razão mandou o conde a Tavarede um seu empregado (Francisco Pires) com a incumbência de empalhar e embalar a mobília para a despachar pelo caminho de ferro? E porque razão, ao tomar conhecimento do caso, o conde havia comentado “se a casa tivesse rodas também a levava para casa dele?”. Estas palavras foram ouvidas por pessoas da terra, que as confirmaram ao correspondente do jornal.
Adianta ainda o referido correspondente que, depois, o pároco mandou chamar o feitor para que lhe contasse o que se havia passado e sabendo que o conde tinha ficado bastante zangado, principalmente por causa do aparador, que era um móvel muito valioso e pelo qual tinha particular estima, disse ao homem que estava pronto a devolver tudo que o conde quisesse, embora sempre insistindo que ele lhe havia dado toda a mobília que havia trazido.
Não sei se o feitor comunicou para Trancoso esta informação do pároco mas, na verdade, o conde não quis mais saber do caso nem da mobília.
Alguns anos mais tarde, é o correspondente em Quiaios, do jornal “A Voz da Justiça”, que fala na mobília, numa pequena local daquela povoação, em Junho de 1905: “…….no jantar dado (pelo padre Joaquim da Costa e Silva, que fora, entretanto, transferido para Quiaios) foram muito apreciados uns pastéis com recheio de mogno, do conde de Tavarede, e uns pãezinhos feitos de milho da congrua que pertencia ao padre Manuel Vicente, actual pároco de Tavarede”.
Será que, na verdade, “a mobília do senhor conde” foi acabar a sua existência em Quiaios?
(Tavarede - Terra de meus Avós - 3º. caderno)
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