quarta-feira, 14 de abril de 2010

UM DIA "1º. DE MAIO", HÁ UM RÔR D'ANOS...

Raimundo Esteves foi um brilhante escritor e jornalista figueirense que, tal como António Augusto Esteves (Carlos Sombrio), Mário Azenha, Cardoso Marta e outros, nos deixaram escritos encantadores sobre a nossa terra, sobre os nossos conterrâneos, sobre os costumes e tradições da terra, etc. Já tenho recordado alguns. Hoje, e como estamos a chegar ao primeiro de Maio (antigamente um dos grandes dias para as gentes da terra do limonete), vou transcrever uma história daquele jornalista. Foi ele que lhe deu o título acima.
A menina Armandina, uma rucita que valia um poêma, redondinha como uma rôla, um tudo nada bélfa, um sorrisinho marôto, olhos com áscuas de lume e beiços sensuaes debruados de vermelho vivo, - topára-me na vespera, mesmo à esquina da R. da Fé, perto da sua casa, na R. das Figueirinhas:
= Ah menino! Olhe que ámanhã, às 4 da madrugada, lá estêmos na Varzea! A gente vae aqui pelo Cruzeiro. E já sabe que não quero outro par...
Foram ali duas mãozadas têzas a selar o compromisso. Lá estaria como um cão. Haviamos de dançar as estopinhas. E quando o sol fizesse botar aos caracóes os corninhos de fóra, viriamos ao Mercado e mercariamos a merenda para a tarde, - rosquilhas da Alhada, peixe para fritar e morangos, - uma grande dóse de morangos...
N’essa noite, no Ginásio e n’uma roda d’amigos, o Abinadab, começou porem a contar com pormenores de fazer crescer agua na bôca ao mais dado a temperança, que um primo lhe mandára por regalado presente, um paio soberbo, - oh meninos é só lombo puro! – umas laranjas mais dôces que mel, e um pipo de vinho, cristalino e claro, tão palheto e oloroso, que a falada ambrosia dos Deuses, lhe não passava à certa as lampas!


D’ahi a nada estavamos todos na Travessa dos Banhos. Lembro-me que ia o Mario Alves, o Manuel de Sousa, o Carlos Martins, não sei quem mais, - mas que da róda fazia parte o Augusto Veiga (Filho) e este vosso creado, isso é que não tenho duvidas...
Comeu-se bem, bebeu-se melhor, tagalesou-se à farta, e depois d’uma volta pela Esplanada, fundeamos no Barba-Azul, como era da praxe..
Às tantas a Senhora Libania, disse amavelmente, = que eram horas dos meninos se irem deitar. O meu relogio, um velho relogio de prata, com mostrador preto, que o Chico Rocha, jurava e batia fé, que lhe dava azar, marcava trez horas. Eu e o Veiga, achámos que não valia a pena enfiarmo-nos em lençóes. D’ahi a migalho já podiamos ir até à Varzea. E de sopetão veio a proposta:
= Olha lá, isto agora, para ajudar a varar a madrugada, o que fazia bem era um gôle de vinho do Porto. O meu pae ainda ontem abriu uma garrafa. Vamos nós a ele?...
Meu dito meu feito! O Veiga morava pegado. E vá de marinhar as escadas, de entrar pé ante pé, de escalar o aparador da sala de jantar, e de fazer as honras ao nectar côr de topazio, a uma arrufada de Coimbra, e a uma loira taça de marmelada...
Sahimos, já só piscavam nos altos as ultimas estrelas. Iamos palavrósos. Não me recordo do assunto, mas haviamo-nos enredado n’uma discussão valente. Esperámos um bocado à porta da quinta do George Laidley, a vêr se vinham as cachópas. Passaram umas sopeiras com potes como mangericos. Depois uma malta tangendo violas, berrando gritarias de fados. E resolvemos seguir o nosso caminho...
Era lusco-fusco. Do nascente vinham as primeiras tintas da alvorada, d’um tom esmaecido de violeta. E a nossa teima azedava-se. Estavamos pirrónicos, teimosos, irritados. Era cada passada de legua e terça. E já clareava a manhã, já boiavam nuvens tintas de rósa vivo, quando ao cabo de vasto calcurriar, topámos uma padeira, com um burro carregado de cestas com pão, na peugada...
= Eh tiasinha! Onde raio está a gente?...


Salve-os Deus! Os meninos estão em Brenha...
Fizémos marcha atraz. Quando alcançámos a Varzea de Tavarede, ia no largo da fonte, um restolho dos diabos. Zurravam gaiteiros. Uma tuna de aldeia, fazia ouvir com regalo modinhas de roda. Havia estalados, malhões gritantes, viras-valsados a preceito. Tilintavam risos. Foguetes estoiravam entre penachos de fumo que o oiro do sol, muito amarelinho e vivo, sorvia com doçura. Tanto andei que topei a Armandina. Andava enaipada com um caixeiro de modas, que a trazia mais agarrada que se fosse um polvo. Fiz-lhe sinal. Ela riu, encostou-se mais ao par, deu mais fortes os estalidos dos dedos. E estava apetitosa, o diabo da rapariga, o chale caido dos hombros roliços, a face afogueada, a bôca entre-aberta a mostrar os dentes certos, os cabelos em desordem.
E a endiabrada môça pulava, saltava, rodopiava como um fuso em unha lesta, e ao passar à minha beira, ironica, trocista, largou na sua vosita prêsa e dificil...
= Quem vem tarde, mólha no vinagre...
... Pobre de mim, n’essa manhã, por causa do pae do vinagre, nem no vinagre molhei! (Raym)


Foi publicado no jornal 'O Figueirense', em 2 de Maio de 1929.
Fotos: 1 - Rancho de Tavarede - 1954; 2 - Tuna do Rancho - 1946

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