quarta-feira, 14 de abril de 2010

Um Tavaredense... mesmo Saloio!


Ando a fazer uma recolha, nos meus apontamentos, para um pequeno 'trabalho' sobre 'Os Quatro Caminhos do Senhor da Areeira', que julgo bastante interessante, nomeadamente sobre o Santo, a Escola, a Cerâmica, etc., e vou encontrando algumas notas recolhidas que julgo merecerem a sua divulgação, pela curiosidade, pela antiguidade e por alguns intervenientes. É o caso desta nota de hoje. Já aqui publiquei a biografia do interveniente, António Medina Júnior. A história passou-se em Sintra, logo nos princípios da sua estadia naquela linda terra.

A Feira dos namorados -Três figueirenses atiradiços -Uma catástrofe em eminencia

S. Pedro é um dos bairros mais populosos de Sintra. Lá existe, entre outros, um amplo e bem arborisado largo, onde de quinze em quinze dias tem lugar uma enormissima feira.
Ali se encontra de tudo.
Se um sujeito pretende, por exemplo, um relogio qualquer e de qualquer marca, vai lá, procura-o e encontra-o. Se carece de um objecto d’oiro, mas oiro de lei, vai á feira de S. Pedro e encontra esse objecto. Se precisa de um fato, de um sobretudo, de uma capa á alentejana, ou emfim, de outra espécie de roupa, vai ali encontrar o que deseja.
Tambem não falta o género sapataria, nova ou usada, quinquilherias, rendeiro, ferragens, ferro-velho, oculista, etc., etc., etc.
É então uma feira muito fertil em bons gados. Os saloios, “enaipados” na sua praxista calça justa a abrir boca de sino sobre as botas de elastico, de jaléca com arabescos ou de blusa afeminada com um grande cordão de botões de osso branco, de barrete com grande borla espetado na cabeça, primam em levar as suas vacas com os uberes cheinhos, até mais não, lá p’ra riba p’ra fêra (como eles dizem), onde depois tratam da sua vida conforme melhor podem.
Chegam a fazer-se ali tranzações importantissimas. A feira de Maiorca, a do Paião, etc., em nada se assemelham á feira de S. Pedro de Sintra. Digo-o com auctoridade, pois bem conheço umas e outra. E oxalá que as nossas assim fôssem...
De modo que, como o leitor está a vêr, o movimento em Sintra, e nomeadamente em S. Pedro, é em dia de fêra qualquer coisa de extraordinário.
Custa mesmo a andar pelas amplas ruas - demais com petizes. E quem para lá fôr com eles, não está bem - por todos os motivos e por mais um...
É que lá vem um encontrão, um palavrão grosseiro, uma pizadela desalmadamente estupida, com cardas e tudo, etc., e lá surge, sobretudo, o edilio da pequenada, que vem a ser a enorme dóse de tendas com as multiplas variedades de brinquedos tentadores que os pregoeiros anunciam:
- A dez tostões; é tudo a dez tostões!...
Ora dez tostões d’aqui; dez tostões d’acolá, e daí a pouco mais um pedido: “oh paisinho, só mais este brinquedo, que eu dou-te um beijinho” e quejandas meiguices em que o meu casalsito é fértil para levar os paisinhos á certa..., o caso é que para ali só se pode ir com a pequenada e respectiva consorte - mas com muitos dez tostões na algibeira...
Ha então designado um dia no ano em que os casados que ainda teem cára com que possam passar por solteiros, não deve levar á fêra, nem a consorte nem os filhos...
É na primeira quinzena de Março, a chamada “feira dos namorados”.
Eu explico por quê:
Nesse dia fica vaga de botequins, de tendas e de tudo quanto sejam estabelecimentos, uma das mais amplas ruas do largo da feira. Só para lá vai fazenda - mas boa fazenda feminina... É denominada rua dos derretes... Isto é, toda a fêmea solteira que pretenda macho, (o mesmo que dizer noivo), vai para aquela rua. Geralmente são saloias sádias e roliças. Raparigas do campo, visivelmente saudaveis. Não usam chale, como as nossas pequenas daí. É tudo casaco. Mas bons casacos, com grandes peles e recheiados de bordados de sêdas garridas. Usam botas de botões ao lado. Algumas põem na cabeça lindos “cachenéts” e outras aboseiram-se de chapeu... á cabeça! Ao pescoço, uma verdadeira montra de oiro tentador que lhe cai sobre a parte exterior dos volumosos seios, escondidos sob um vestido berrante em que predominam rendas caras, muitas rendas caras... Debaixo de um braço, uma bolsa xadrez orlada de borlasitas de lãs de côres diversas. Os olhos espetados no chão, onde a ponteira de uma sombrinha entretidamente se diverte, as pretendentes assim estão horas e horas, á espera de quem não prometeu ir...
Os rapazes, que se apresentam como melhor podem, esses vão, olham, escolhem a que mais lhe convêm, aproximam-se dela, metem fala. Se são correspondidos é porque a pequena gosta deles. Começa então o namôro. Mas namôro que ali se arranja, naquele dia, é casamento certo, tornando-se curioso o facto de a maior parte desses namorados só dali se conhecerem... Alguns há que só naquela ocasião se viram pela primeira vez!...
Um saloio fez isto: Gostou de uma saloia. Foi comprar uma gaita de bôca. Chegou ao pé dela. Não tinha coragem para se declarar. O que fez? Poz-se a tocar, a tocar. Ao fim de 2 horas de toque, a noiva lança-se-lhe nos braços, como quem diz: sou tua; ou então: não toques mais que desafinas a gaita; e pespegaram-se ambos a dançar...
Estava o casamento preparado...
Outros estão horas e horas juntos, a brincar com os pés na areia do solo, atirando com eles mutuas chapadinhas, mas sem coragem para romper o seu profundo silencio que os envolve. São ambos “mudos”...
Aquilo tudo, é emfim, um soberbo pratinho para a rapaziada de Sintra (propriamente dita), que para ali vai “gosá-los” com uma destas disposições francamente raras e boas para um sujeito desopilar a rir com a maior satisfação...


Três figueirenses, O Zé Dias Leitão, o João Monteiro, sargentos de aviação, lá debaixo da Granja, e eu, fomos todos até á “feira dos namorados”. Bem entendido, tudo podia escapar-nos, mas menos a rua dos “derretes”...
O Dias, com seu respeitavel nariz pombalináceo, dirige-se a uma mocetona de truz e fala baixinho, declara-se em segredo...
Não tardou que levasse com o vexatório e vergonhoso meio tostão. (Nós aí chamamos uma cabaçada, quando nos bailes convidamos uma moça a dançar e ela nos diz impertigadamente: não senhor! Aqui é um meio tostão...
A saloia deu-lhe, pois, com o meio tostão e “repicou” alto e bom som, qual sino em dia de festa:
-Então, hein! Cuida que não o conheço! Ora vá lá para a sua mulher e para o seu filho, ande! Forte atrevido que me saiu o casadão... Eu bem conheço os soltêros pela pinta...
O Zé Dias raspou-se logo, bem entendido, p’rá tenda do Maneta de Colares, onde afogou, num copo de tão genuino termo, tão fatal desilusão...
O Monteiro, esse teve mais sorte. Meteu tréla. Foi correspondido. Conversou, conversou, mas de repente apresenta-se ao lado dos “namorados” um rapagão valente, mais forte do que o Paiva do Ginásio, de cacête nas unhas, que disse:
- “É r’periga, “abala” daí que o mê sargento é casado. Querias tu voar, hein? Nan vês que é pardal com azas?!”...
O Monteiro teve que conformar-se e ir ao encontro do Dias, que ria a bandeiras despregadas. Invejosos, porém, com a minha sorte, pois eu estava realmente bem “encostado” os desiludidos procuraram muitos amigos, contaram-lhes o sucedido e eles aí estão a passar constantemente junto de mim e da minha noiva, que até já me tinha dado o praxista ramo de flôres...
Muito sizudamente, fazendo de conta que os não conhecia, para não me “desmanchar”, tive no entanto de mudar de lugar. Foi peor, porque momentos depois apareceu-me uma senhora conhecida, que muito propositadamente me cumprimentou desta maneira:
- Adeus, sr. Medina. Está bem? E a sua senhora? E os seus filhos?
Fiquei varado...
Ora o leitor está a vêr o pratinho que isto tudo constituiu para os meus invejosos conterrâneos, que logo por sorte assistiram à derrocada toda...
Riram-se de mim - como eu me ri primeiro dêles. Depois.. tive de me rir tambem de mim...
A minha derretidinha é que se metamorfoseou repentinamente de anjo em féra e de féra em automovel relampago...
Ripa-me da mão aos flôres amurchidas pelo calôr do meu terno e meigo coração, olha-me de revéz, mira-me dos pés à cabeça, atira fóra o ramo, e espumando, chama-me um nome feissimo que felizmente não tenho. Nisto engata o motôr e ela aí vai em prise directa até junto dos seus velhotes - dos meus simpaticos sogros...
Bem entendido, o Medina, o Dias e o Monteiro fizeram marcha em sentido contrario, não quizesse o diabo que aparecesse de repente algum padre para nos casar as costelas com algum bom marmeleiro, que éra, segundo a minha consciência, o que isto tudo precisava, para vêr se havia mais juizo...
E aqui está como a “feira dos namorados”, de S. Pedro de Sintra, este ano foi passada entre três figueirenses que pretenderam recordar, aos 31 anos, o que na nossa rica praia com niñas guapitas fizeram aos 20 anos - em que não havia ainda a grilheta da família (que hoje é, vamos lá, a minha maior alegria e satisfação).
De modo que se ainda cá estiver para o ano e o destino caprichar em me conservar a fisionomia solteirissimamente nova (nova e bonita, claro está...) confesso que a respeito de namorar, antes quero ter a fama do que o proveito...
Nada que o diabo ás vezes tece-as. E eu não tenho as costelas no seguro...
Livra!...


Esperteza saloia ou... esperteza tavaredense?

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